APRESENTAÇÃO


Quens sou Eu?


Já se terão passado mais de dez anos desde que escrevi a primeira peça deste volume.

Era na Alemanha, sob um frio polar e uma reclusão beneditina. Talvez a estranheza do ambiente e a saudade da minha língua contribuíram para que, após oito anos de decidida recusa em voltar a redigir poemas, eu enfim cedesse a ouvir alguns versos sussurrados ao meu ouvido e os registrasse num guardanapo ou sobre a palma da mão. Claro que acredito em inspiração, com o mesmo fervor devoto com que desacredito em fadas ou musas. Infelizmente para os menos crédulos, a inspiração é sim algo que vem de fora, mas não de alguma possessão divina ou de uma canalização mediúnica. Abebera-se de fiapos de conversas, placas luminosas vistas em relance, refrões de música vagabunda, uma indistinta melodia que se escuta ao dormir (movimento browniano?) ou, enfim, quem sabe, a partir das alucinações auditivas geradas pelo ruído do calefator e o som do tecno industrial escapando da loja militar do subsolo de minha modesta Hauswirt. Toda uma balbúrdia que, uma vez internalizada e somada ao tesouro indestriçável do subconsciente, foi sendo inconsciente e obstinadamente retrabalhada a despeito de minhas reservações até que, por descuido, uma dose de Schnapps a mais, uma noite mal dormida, conseguiu romper a barreira da atenção consciente e me surpreende com sua beleza intemporal e a sua profundidade atordoadora.

Ai estilo digressivo! Sou uma mente desorganizada. Começo onde deveria terminar, depois volto a falar sobre um ponto pelo qual não havia ainda sequer passado. Repito algumas vezes os mesmos temas até que irrompam os bocejos dos que tentam me alertar com o gesto generoso de que me delongo, me extravio, me desalinho com as tranças despenteadas das palavras. Costumava ser bom domador de sentenças. Conhecia-lhes cada tique, cada amuo silencioso ou rosnado recalcado, mas também os seus perigos. Com essa original maestria, normal numa mente jovem, acesa para a novidade do mundo, escrevi meu primeiro livro O Céu das Ideias Fixas, muito superior a toda aquela pasmaceira que se escrevia naqueles dias, mas que nunca logrei publicar, seja por uma congênita timidez, seja por uma cultural herança de iniquidade que, neste país, premia os bem nascidos ou bem relacionados em detrimento dos critérios de mérito.

Quanto ao meu antigo jugo sobre palavras, hoje descuido em cuidar disso, ou melhor, cuido em descuidar delas. Deixo que me enganem, que se esquivem, que se mudem para a Bahia, que é terra boa, sem deixar endereço. Tanto faz. Todo mundo se encontra no Farol, ou num terreiro, que é preciso temer a santeria. Mas guardo sempre comigo aquelas poucas palavras com que me sirvo para dizer a mim mesmo o que me ocorre dizer, salvo se ainda nisso me equivoco. E quanto mais simples as palavras, mais poderosas, mais originária e poderosamente poéticas. Abomino o hábito difuso em outras línguas como o italiano, o francês, o alemão e o inglês, segundo o qual escrever bem é eleger construções raras, à borda da ininteligibilidade. Nisso, brasileiros, lusitanos, espanhóis e latinoamericanos recebemos, pelas vias tortas de nossa incompetência, o tino de um instintivo senso de bom gosto: redigir bem é ser claro, pois a escritura visa à comunicação, e é, por isso, mais que qualquer outro, um ato de amor. Para que dizer cárcere, se os pobres pagam pela injustiça dos brancos na cana mesmo?; porque escrever libido, quando o que sinto se chama tesão?

Então me satisfaço com minha rala gama de palavras. Quem sabe um gênio maligno se divirta em me fazer imaginar que penso com meu parvo vocabulário o que penso que penso, quando o que cogito com ele é o contrário do que cogito de que cogito.? Mas, apesar de divertido o pensamento, é óbvio que palavras servem para veicular pensamentos, não para pensar. Ninguém, salvo talvez alguns enfermos, pensa com palavras. E ainda é correntio nos meios humanísticos que se assevere que a linguagem natural molda o pensamento, a despeito de todos os atinentes experimentos das neurociências apontarem contundentemente para o sentido oposto (refiro-me à a famigerada tese Shapiro, sufragada pela filosofia de poltrona de Quine e Kuhn, e até por um verdadeiro gênio como Caetano Veloso, que em certo verso insinua que só seria possível filosofar em alemão, o que é um ledo equícovo, não só porque pensamento nada tem a ver com linguagem social como porque, dos idiomas que conheço, o alemão é de longe o mais enquadrado e limitadoramente inexpressivo). Pensamos sim com meias-referências, implicaturas truncadas, raciocínios de hipóteses eleitas às pressas segundo um cálculo expedito de plausibilidade, enfim, por meio de uma linguagem do pensamento entendido como capacidade congênita de manipular de signos e não como mera fala ou produção numa língua social como o português ou o espanhol, e aceitamos as conclusões a que chegamos rotineira e instintivamente como provisórias, porque só fanáticos têm certezas, e a vida ensina que estas jamais duram o bastante. Há, a esse respeito, na literatura científica o registro de centenas de casos de crianças e mesmo adultos que, criados em isolamento, nunca aprenderam uma língua natural, ou melhor, social, pois a língua natural é a do pensamento (com que nos dotou a evolução genética), e que só aprenderam linguagens sociais tardiamente, quando puderam narrar aos investigadores suas vidas e pensamentos pregressos. A linguagem social com que nos comunicamos (o mandarim ou o inglês) são simples convenções sociais moldadas e aperfeiçoadas pela interação secular, e as quais simplesmente não teriam existido se não existisse uma linguagem do pensamento pré-moldada nos nossos cérebros, como etapa necessária para que possamos aprender qualquer linguagem social.

Anos sem conseguir publicar agastaram minhas relações com a poesia. Para que serve um poeta sem um público? Pois o que um poeta deseja é ter um público, ser ouvido, enfim, ter uma voz. Não para fazer dinheiro ou ser famoso. Quem quer fazer dinheiro não escreve poesia, escreve romances teens, trabalha no mercado financeiro, vende estupefacientes, se expõe num reality show. Um poeta quer simplesmente dividir com os outros aquele achado, quer propiciar aos seus semelhantes a maravilha e o prazer da beleza que ele por acaso descobriu. A poesia, repito, é um gesto de amor. Por isso, quem quiser ler estes ou outros poemas meus os achará abundantemente na internet. Por favor, os copiem se lhes agradarem, mostrem a quem, reescrevam se os inspiram.

Retomando a fiada, rompi com a poesia por algum tempo. As ideias, é claro, se avolumaram, e então me obriguei a redigir a ponta de lápis um desconcertante conto-novela, que prometo em muito breve converter em romance. Chamava A Gaiola, e inquiria se quem estamos na gaiola somos nós ao invés do periquito Getúlio, presos entre metas e expectativas no mais das vezes alheias e nunca genuinamente por nós mesmos elegidas. Alguns anos depois, sucedeu a viagem a Berlim. Toda a inspiração represada rebentou, e eu me revi em voltas da necessidade incontornável de reescrever poesia... O primeiro poema, escrito sob inspiração benjaminiana (estava eu diante das Passagen, assistindo ao seu ocaso ante à ereção dos malls e contemplando a felicidade posta à venda nas vitrines. Assistia às ruínas da civilização recicladas como cartões postais (a Gedächtniskirche, por exemplo, ou o Checkpoint Charlie), em frente às aras do Deus da Razão imolado como um herói inocente pela culpa de não saber ter culpa.

A influência de Benjamin, que então me embrigava, hoje me parece, sem pretender soar cínico (em que depois me converteria ao redigir meu livrinho predileto em homenagem ao meu colega de bebedeiras e intempéries Diógenes de Sinope), bastante curiosa. Ou simplesmente jovialmente romântica. Mas em nada prejudica os poemas escritos sobre sua inspiração: um poema tem sempre várias camadas, e é uma violência impor-lhes uma interpretação unívoca. Somos, também, afinal de fato muitos, os muitos que sucedem no curso de muitos dias, e a cada manhã morremos com tamanha assiduidade que, em um dia plano como qualquer outro, desaprenderemos a morrer. E é então que começa a verdadeira viagem. Porque a vida, a verdadeira vida, e o digo com mais credenciais porque nunca fui religioso e até hoje resisto em ser ateu, só existe na eternidade, mas isso só se compreende com o tempo, à medida que aprendemos a enxergar através dele.

Em homenagem ao poema que psicografara entre uma nevasca e outra e que reinaugurava minha atividade poética, resolvi batizar o livro que nascia Inverno em Alemão, com base em uma tardia tradução em inglês que vertera o título do primeiro poema do livro, Inverno Berlinense, em Winter in German.


Por Que escrevo Poesia?

É difícil conceber as dificuldades envolvidas em se escrever um livro de poesia. Na prosa, a narrativa conduz a imaginação do escritor e facilita a leitura do leitor. Já na poesia, cada palavra é pensada exaurientemente, e todo verso é por conseguinte absolutamente inicial. Estamos sempre de novo à casa zero, sem o suporte do que já foi dito. Conheço uma pletora de romancistas que nunca corrigem seus textos, o que me provoca certo horror íntimo. Mesmo entre meus prosadores prediletos, não deixo de me agastar com personagens deixados pelo meio ou com a sensação de que alguém que se propõe a escrevinhar trezentas páginas não tem total conhecimento de aonde quer chegar nem pode humanamente tratar a contento toda a pletora de informações que vão inevitavelmente se acumulando. Para um poeta, isso não tem outro nome senão desleixo. E, por isso, criado numa atmosfera de disciplina luterana, não tive escolha senão me tornar um poeta.

Mais difícil ainda é publicar poesia. É certo que a maioria dos livros que se dizem de poemas são blablablá oligofrênico. Isso concedido, que a maioria avassaladora dos leitores ainda assim prefira ler calhamaços de narrativas redundantes e mal-costuradas a ler versos dotados de uma concisão e profundidade que ultrapassam em proveito e prazer o conteúdo desses frankensteins me deixa indignado. Considerem ainda o fato de que um livro de poemas costuma ser mais barato e breve, poupando portanto o custoso tempo do leitor e lhe aliviando o bolso. Outro dom fantástico da boa poesia é o de aderir a memória: bons versos serão sempre lembrados. Já um romance, chegado à página quinhentos, o desafio para que me narre todos os eventos anteriormente sucedidos. Ao fim de seis meses, sua lembrança será nula. Talvez as linhas gerais, o nome de um ou outro personagem. Você inevitavelmente terá de se socorrer da sinopse do livro na wikipedia. E todo o tempo investido na leitura das alentadas páginas terá retorno zero.

Obviamente razões poderosas justificam o fenômeno dessa preferência da prosa pela poesia por parte do grande público. Primeiramente, o fato de a poesia ser inerentemente plurívoca. Ela exige a contribuição ativa do leitor para completar-lhe os sentidos, para derivar suas consequências, para trazê-la para a intimidade de seu mundo intersocial e pessoal. Já na prosa, o leitor vai sendo conduzindo pela história, mais ou menos como num seriado de TV. Por isso, Haroldo de Campos prenunciou a substituição da prosa narrativa pelo audiovisual. Receio que talvez lhe assista razão. Hoje medram os audiobooks, que são uma mão na roda para quem perde quatro horas diárias comutando de casa ao trabalho e inversamente nesta feia e dura flor chamada São Paulo.

Em outras palavras, o leitor está muito cansado ou assoberbado (eufemismo para preguiçoso) para ter que pensar com a poesia e prefere ser pensado pela prosa. Meus amigos sempre reclamam que eu nunca sou companhia para o cinema. Para ser franco, acho cinema uma linguagem para adolescentes, como a prosa é distração para quase-adultos. Passei da idade para ver graça em tais coisas, ainda mais por serem sempre tão redundantes. Quando me contam um romance, bastam três palavras, e eu adivinho o final. A vida ensina que as suas possibilidades, embora repetíveis ad infinitum, são esgotáveis. Isso Aristóteles lamentou na Poética. Mas essa limitação também é a condição para a possibilidade da busca da verdade, que é a investigação do universal. Abomino a vulgaridade dos fatos mas venero a beleza de toda teoria. De uma forma ou de outra, definitivamente, os prazeres da narrativa não são para mim.

Quanto ao prevalente realismo-psicológico há mais de século em voga entre os romancistas e tão apreciado pelos norte-americanos, não me parece nem realista nem psicológico. Não é realista porque baseado no obscurantismo de fringe-sciences como a psicanálise e a psicologia. É óbvio que uns 90% de nossa vida consciente e inconsciente transcorre sob o domínio implacável do acaso, e sobre ele não há mais a ser dito senão que acontece todo o tempo... Além disso, disciplinas mais sérias como a microeconomia e a biologia evolutiva ensinam mais sobre a atitude e a natureza dos homens do que essas empoeiradas especulações que confundem caráter com herança ou com circunstância. Do prisma mais estritamente artístico, investigar as pretensas ruminações de um homem qualquer invariavelmente esconde no seu pano de fundo uma trama deploravelmente banal. Não estou interessado como certo personagem prefere vestir o pijama antes de dormir, ou se fulana amava mais ciclano que beltrano com quem, por execráveis incompatibilidades sexuais, acabou não se casando... Ora, isso é problema privado deles, desculpe, não estou interessado.

Para piorar o quadro, mais artificial que uma narrativa do tipo la marquise sortit à cinq heures é tentar camuflar o artificioso da prosa de ficção através de expedientes de fluxo de pensamentos, diletos das vanguardas velhas e novíssimas: como expliquei acima, ninguém pensa com palavras, disfarçar as convenções da narrativa fazendo os personagens falarem consigo mesmos é tão fabuloso como marcar os intercâmbios de um diálogo dizendo que fulano se retesou ou mudou de tom. Tudo somado, não acredito em realismo psicológico. A verdadeira literatura bebe do fantástico, do tesouro atemporal da saga humana e que hoje se desdobra na ciência-ficção, ainda que falte no mais das vezes talento estilístico a seus autores, mas que cumpre ainda assim o papel de fonte de novos caudais de reflexões e desafios... Quanto ao artificialismo, a poesia o assume como seu instrumento e não sente honestamente vergonha disso. Nunca procura parecer o que não é nem poderia ser. A poesia se pretende um artifício porque toda obra de arte o é. As Cataratas de Iguaçu são inefavelmente belas, mas isso não as torna uma obra de arte. A arte é fruto do trabalho do homem, é portanto um artefato, um artifício.

Em segundo lugar, a par da maior exigência de um livro de poesia em face dos leitores, reputo que estes devam também preferir a prosa de ficção pela razão de que escrever boa poesia é tão dispendioso, consome tantos anos, que é natural que existam muitos mais bons romances que bons poemas. E, desta maneira, a oferta determina a demanda, e a demanda determina o hábito (meu raciocínio econômico aqui é intencionalmente heterodoxo, por favor, nunca levem à risca o que digo, desistam de adivinhar quando falo sério ou apenas provoco). Daí porque não deveria ser tão chocante que eu tenha levado dez anos para conseguir, sabe Deus sob quantas tribulações, publicar este volume. Mas basta com as minhas ladainhas, vamos ao livro!

Um Livro em Três Metades

Reuni os poemas que compus durante o período de 2001 e 2005. O capítulo inicial, escrito entre 2001 e 2003, têm dicção pós-moderna e às vezes quase-falsamente-prosaica. Diálogo com escritores e poemas predecessos. Sinto a influência de meus diletos contemporâneos, de minha paixão por Fernando Pessoa, de Décio Pignatari e dos irmão Campos, do meu genial conterrâneo Paulo Leminski, da imagística americana e do irregular mas decisivo T.S. Eliot. Esses poemas, que exploram as possibilidades da linguagem e da prática poética, reuni num capítulo denominado Variação e Recorrência (para os menos nerds, essa é uma das definições de "poesia", embora a que eu prefira seja a que a conceitue como a crítica da vida - "the criticism of live", Matthew Arnauld: e que belo achado, tiro o chapéu!, quer dizer, o boné, pois, se a definição não for verdadeira, é bem inventada!). Em último juízo, o capítulo trata do fazer poético e é, portanto, um exercício de metapoesia.

A partir de 2003, acometido por um arroubo delirante e maníaco, decidi que já havia contribuído o bastante com o cânon ora dominante, e que havia mesmo progredido para além das cartilhas com algumas radicais intervenções pós-pós-modernas no anterior O Céu das Ideias Fixas (por exemplo, alguém me explique as descolagens, citações falsas, contra-homenagens, paródias sinceras e anacronismos de Os Dias Árabes, por exemplo). Resolvi então desafiar o regime posto, escrevendo poemas sobre aqueles temas acima de todos execrados, ridicularizados, desconsiderados e proibidos: o amor e a solidariedade humana.

Primeiro vieram os socialmente engajados, que não me ocuparam muito,
talvez seis meses, e que renderam poucos exemplares. Me vali das lições de Gilberto Mendes Teles, Affonso Romano de Sant'Anna (poxa, que nome bonito!), João Cabral de Mello Neto, Eduardo Alves da Costa, Bertolt Brecht, Vinícius de Moraes, Sophia de Mello Anderson e Carlos Drummond de Andrade. Reuni-os no capítulo A Existência Consentida, frase essa que ocorre num trecho de um dos meus versos.

Finalmente, entre 2003 e 2005, me dediquei a escrever poemas de amor. Compõe a alma deste livrinho. São versos sobre amor amical, filial, sensual, circunstancial e mesmo incondicional. Tentei esgotar todas as tradições metafóricas a respeito do amor, na medida das minhas capacidades, é claro. As fontes são inesgotáveis: Platão, Drummond, Vinícius, o monumental Lêdo Ivo, Pablo Neruda, Chico Alvim, e.e.cummings, Sappho, Rainer Maria Rilke, tantos e tantos mais. Ao título do capítulo só cheguei este ano: Manual para Amadores. Penso que modestamente possa contribuir para uma espécie de educação sobre o amor.

Procurei manter a ordem cronológica segundo a qual os poemas foram escritos. Ma com duas importantes exceções: primeiro, às vezes alterei tal ordem, com o intuito de melhorar ou facilitar sua recepção (alternando poemas mais ligeiros com mais graves, por exemplo); segundo, inverti os capítulos segundo e terceiro, para poder dar ao leitor o vislumbre de que há várias formas de amor, e que, talvez, a mais bela, seja a que chamamos solidariedade ou amor à humanidade e às formas de vida. A par disso, há neste volume um considerável montante de poemas escritos em outras línguas que não o português. Nesse caso, não quis aborrecer o leitor apresentando-os misturados aos demais, coloquei-os simplesmente na tradução portuguesa que eu mesmo providenciei. Insisti em mantê-los primeiro porque ao fim realizei traduções que me soaram ao menos satisfatórias, mas sobretudo porque alguns compõem a própria ossatura do livro e, à sua falta, talvez a este Inverno faltasse ainda por cima um coração. As versões originais seguem num apêndice final, a quem interessar possa.

Bajulações de Praxe

Estive gravemente doente a partir de 2005 e não fui digno daquele amor incondicional daqueles a quem sempre me dediquei e com cujo apoio acreditava merecer contar, amor cuja menção tantas vezes ilumina estes poemas. Deixem estar, não sou do tipo rancoroso, águas passadas não movem redemoinhos rsrs, e, balanço feito, é preciso saber amar, mas também é preciso saber escolher a quem. Mas sempre tive o amor dos cães como todo solteirão, em especial de meu filho Límiti, sob cuja inspiração eu escreveria na sequencia meu ditirambo em homenagem às matilhas dos cínicos viventes e extraviados (Invitation to an Island). Mas asseguro que não sou desses mal-amados que se refugiam no convívio com animais por rancor à humanidade. Amo tanto os homens que lhes estendo este resultado de meus esforços e espero com avidez a generosidade de suas críticas pertinentes e mesmo destrutivas. Que escutem um pouco da minha voz, que é o maior presente que podem me oferecer. Se divirtam e que a felicidade, que se diz só bater uma vez a cada porta, se engane de endereço e os abençoe repetidas vezes, meus irmãos!

Agradeço ao meu melhor amigo, o tempo, o qual me permitiu melhorar incansavelmente estas linhas, mas me arrogo nesta oportunidade a propriedade inalienável e intransferível de todos os desacertos, desleixos e exageros que possa ter cometido.

Nesse ponto, noto que abomino as tentativas da autoridade política em decidir acerca da correta ortografia das palavras. Costumo me ater a essas regras autoritárias apenas para não colapsar o sistema informacional de meus solícitos editores, mas o complexo ortográfico imposto pelos políticos é tão inconsistente que é impossível deixar de incorrer em supostas incorreções. Tarde demais para uma reforma: com a difusão da educação, nossa defeituosa escritura se solidificou irremediavelmente. Mas há sempre brechas. Por isso, confiem em mim: meus aparentes erros são na verdade acertos de quem venera e compreende mais a língua que um burocrata ou um douto fossilizado. Um idioma pertence ao patrimônio cultural de um povo, não pode ser decidida por decretos, nem tem ninguém autoridade de impedir ao criador ousar os desvios que julgue interessantes ou necessários. Previno, enfim, que me repugnam os solecismos lógicos e verdades contrafatuais da gramática de estilo, que não merece a consideração nem sequer de uma inteligência modesta como a minha.

São Paulo, 24 de setembro de 2011.

P.S. Aproveito ainda para esclarecer que pequenos números claros postos ao lado das estrofes não indicam contagens de linhas, mas sim o metro dos respectivos versos. Assim, um "12" ao lado de uma estrofe significa que a stanza é composta de dodecassílabos. Quando há cesuras ou quebras, são indicadas apenas para o verso em questão, não valendo a observação para o resto da estrofe. Alerto que minha metrificação obedece a critérios contemporâneos e ao verdadeiro jeito com que falamos português no Brasil, da mesma maneira como, quando metrifico em francês não conto sílabas mudas pela singela razão de que, em detrimento da empoeirada tradição, elas simplesmente não existem. Então porque eu, que não tenho o dom de ver fantasmas, me daria ao trabalho de fingir que tenho clariaudiência espectros? Como exemplo, cito os “haches aspirés” (como em “hauteur” ou “héros”, que não poderiam ser elididos com uma vogal anterior porque seriam aspirado, como o “h” inicial do alemão..., surreal, não lhes parece?, embora tais aspirações não sejam mais pronunciadas há mais de trezentos anos, e o caso todo só pode mesmo ser atribuído a um velho complexo de inferioridade de meus parentes franceses em face dos alemães (logo de quem!, mas gosto não se discute...). Ou então os “e”s átonos finais, e às vezes intersilábicos, que não são pronunciados, como o “e” de “je” ou “carrefour”, salvo numa tosca e exagerada pronúncia parisiense. O mesmo ocorre em português, observem: o verso “poetas tradicionais se reúnem em saraus”, quantas sílabas tem? Obviamente se trata de um dodecassílabo e ainda alexandrino com acento agudo na 6a: “pwe-tas-tra-di-cio-náis-se-rew-ne˜-nhem-sa-raus” (por “w” denoto não o “u” que no português usamos em sílabas tônicas, arredondado e bem articulado, mas o que pronunciamos em sílabas reduzidas, como os “os” finais das palavras paroxítonas, e que mais se assemelha ao ”u” de “Maus” em alemão ou “good” em inglês). Agora me digam quantas sílabas contamos em “ele cursou a faculdade de medicina”? Temos de novo um dodecassílabo, com acentos na 4a e 8a, pelo simples fato de que a última sílaba de “faculdade” é foi e será sempre muda. Diga a frase em voz alta e ateste como não digo nenhuma asneira. No caso do inglês, havendo uma abundância de alófones, me sirvo do que melhor convém ao verso em questão (assim, ‘beer’ pode valer, conforme a conveniência e a altura do colarinho, por uma ou duas sílabas (“bi:” ou “bi:â”). Já em italiano, espanhol e alemão, a metrificação tradicional conserva em linhas gerais sua validade, salvo no caso das terminações do infinitivo alemão que, por fidelidade à pronúncia real, deve ser ignorada, pois significa um mero ressoo nasa e não uma sílaba distinta (assim, o verbo “warnen” é, a despeito da aparência, uma oxítona e pronuncia-se corretamente “va:ñ”), considerando-se ainda que o “e” final átono em alemão pode ou não ser reduzido, indiferentemente: tanto “hét” quanto “‘héttâ” são alófones válidos para “hätte”. Peço desculpa pela maçante digressão técnica, mas é sempre bom se precaver contra os chatos de plantão, os quais, por estranha coincidência, costumam ser exatamente aqueles pseudo-intelectuais menos cultos e informados.


Tuesday, November 29, 2011


A DURAÇÃO DAS CINZAS




vão-se os anéis de fumo de ópio

e ficam-me os dedos estarrecidos

(A.Calcanhoto e W.Salomão)




Estes versos que na tarde te oferecem

mais que desenfado, companhia,

são os órfãos filhos da solidão,

que na desatenção engravidaste.


São irmãos do silêncio que os envolve e reensina

o prazer de cada sílaba

ou o gosto amarelo dos livros

que na estante se esqueciam.


Devagar se desatam à maneira do jornal

ou dos membros que se estendem

no sofá onde aninha a preguiça,

enquanto você fuma e deposita


no cinzeiro, que é também cristal

e reverbera o transe e o fumo,

a cinza rediviva dos minutos.

Sequer imaginavas quanto tesouro


no teu quintal se guardava,

e que era apenas, para a sua surpresa,

o pó mesmo que cavaras,

sem lograr tocar nunca ouro,


mas que se moldou em outra coisa

e acabou merecendo

um nome

e uma fala.


Tanto andor perdido além da casa

à procura da palavra exata,

sempre desencontrada.

Dessas viagens, que te consumiram


as tardes, os cabelos, os amigos

não sobrou sequer o pó das estradas,

ou a luz das estrelas

(que também amornam e evaporam


como o café sobre a mesa),

mas que gravaram na garganta

um travo turvo de angústia

por não poderes esgotá-los


por ser somente tão raso,

enquanto as densidades delas

múltiplas.

Logo as vê hirtas sobre o abismo


horizontal da página escriturada.

Cada qual exige a adoração extremada.

Cada qual se alça em filho favorito.

E então experimentas o pejo de pai moço


que receia em roçá-las, para não ferir

ou maculá-las ocupando nelas uma parcela

embora ínfima, de atenção.

Acolhe assim como estão


e não deseja outros.

São os ídolos mais brunidos

no altar dos teus mitos.

E se alternam nos ofícios,


competindo por louros.

Te comoves em escrevê-los,

já que sabes que ao fazê-lo

lhes conferes maioridade.


Adiante terão de tropeçar por si

e perder-se também por si,

enquanto, outra vez perdido,

cogitarás novos consolos.


Como o amor ou como a chuva,

a sua promessa de beleza te curva.

Aprendes então a lição mais dura

de um mestre que avilta e tortura.


Aceitas a sua doação mínima,

sabendo que em contrapartida a tua entrega

terá sido somente infinita.

Alumbram na tua vista


as suas chispas de medusa,

atrás das quais ocultam

o conceito e a forma que perfazem

a idéia (fantasmagórica) daquilo que


à míngua de outro,

chamamos arte.

Mas que de tão humanos e tão simples

são maiores do que a vida,


que neles se articula e projeta

um sopro, uma sombra

difusa e tímida.

São flores, embora não se saibam ainda,


e esperam alguém que os recolha

ou vigie apenas,

e com um esgar de lembrança fixe

a sua quase-verdade efêmera


São gestos, mas praticados na intenção,

têm vida e fome próprias.

São os excessos de um desejo

que sublimam em desejo,


e que, uma vez cumpridos,

são como um fim em si mesmos,

tais torrentes que não souberam ser rios

e, sem desemboque, a terra reabsorve,


como se somente os movesse a casta

sedução de ser mais nada.

Enfim já pousam,

e te recompões do combate difícil.


Lá fora, a penumbra avança pela rua,

e um magenta conduz a necrose do dia.

As cores, como as casas,

numa zona de cegueira se retiram,


e um vazio agora preenche todo o universo.

Mas dentro de ti é como se o instante pairasse imóvel,

mas dentro de ti é como um mundo completo,

todo aceso e desperto.


Sorris à memória dos teus versos,

e eles, a seu modo, entre si também se riem.

Como preservar esta embriaguez,

precária como qualquer êxtase?


Já te levantas, experimentas as pernas,

estão quase alerta, e com elas caminhas.

Luzes de novo se sacodem,

uma chaleira estrila na cozinha.


Armários se esticam, pigarreia a louça.

Dedos roubam a paz das xícaras.

E a memória dos teus versos,

como um cheiro ou como a tarde,


lentamente se dissipa.

Foge rumo ao longe,

muito além das horas,

rumo aonde não te respondem.


A noite te devolve ao sofá,

e nele recobras a solidão,

suspensa no ar, que afinal

nunca perdeste.


Tentas, na tua sala sem visitas,

em vão tatear o que nela acende.

E o que encontras é nada,

ou talvez menos ainda,


menos que a sombra

sobre o sofá deitada,

onde sozinho e em silêncio

de novo repousas.


A BOCA


Sente-se um calor de fogueira,

se os lábios abrem-se apenas.

Uma fumaça então se alteia,

toda de som feita.


E dela uma labareda, às vezes,

pula em gesto irreverente.

Ou tentador, para que matéria te vertas

e nela te percas.


Pedras obstruem a entrada

e trituram o que não agrada.

São marfim, medido em fileiras,

qual porta perolada.


E, além dela, te aguarda faminto

o céu do palato lascivo dos vencedores

ou o inferno dos nove círculos

constritores.


Deve ter uma serpente dentro da gente.

Quem sabe a mesma que em primores

nos pensou trair e hoje se esconde

dentro em nós numa singela simbiose.


Poço e mina de onde

surde veneno mas também meneio

em tudo o que se fala

e no que se cala.