APRESENTAÇÃO


Quens sou Eu?


Já se terão passado mais de dez anos desde que escrevi a primeira peça deste volume.

Era na Alemanha, sob um frio polar e uma reclusão beneditina. Talvez a estranheza do ambiente e a saudade da minha língua contribuíram para que, após oito anos de decidida recusa em voltar a redigir poemas, eu enfim cedesse a ouvir alguns versos sussurrados ao meu ouvido e os registrasse num guardanapo ou sobre a palma da mão. Claro que acredito em inspiração, com o mesmo fervor devoto com que desacredito em fadas ou musas. Infelizmente para os menos crédulos, a inspiração é sim algo que vem de fora, mas não de alguma possessão divina ou de uma canalização mediúnica. Abebera-se de fiapos de conversas, placas luminosas vistas em relance, refrões de música vagabunda, uma indistinta melodia que se escuta ao dormir (movimento browniano?) ou, enfim, quem sabe, a partir das alucinações auditivas geradas pelo ruído do calefator e o som do tecno industrial escapando da loja militar do subsolo de minha modesta Hauswirt. Toda uma balbúrdia que, uma vez internalizada e somada ao tesouro indestriçável do subconsciente, foi sendo inconsciente e obstinadamente retrabalhada a despeito de minhas reservações até que, por descuido, uma dose de Schnapps a mais, uma noite mal dormida, conseguiu romper a barreira da atenção consciente e me surpreende com sua beleza intemporal e a sua profundidade atordoadora.

Ai estilo digressivo! Sou uma mente desorganizada. Começo onde deveria terminar, depois volto a falar sobre um ponto pelo qual não havia ainda sequer passado. Repito algumas vezes os mesmos temas até que irrompam os bocejos dos que tentam me alertar com o gesto generoso de que me delongo, me extravio, me desalinho com as tranças despenteadas das palavras. Costumava ser bom domador de sentenças. Conhecia-lhes cada tique, cada amuo silencioso ou rosnado recalcado, mas também os seus perigos. Com essa original maestria, normal numa mente jovem, acesa para a novidade do mundo, escrevi meu primeiro livro O Céu das Ideias Fixas, muito superior a toda aquela pasmaceira que se escrevia naqueles dias, mas que nunca logrei publicar, seja por uma congênita timidez, seja por uma cultural herança de iniquidade que, neste país, premia os bem nascidos ou bem relacionados em detrimento dos critérios de mérito.

Quanto ao meu antigo jugo sobre palavras, hoje descuido em cuidar disso, ou melhor, cuido em descuidar delas. Deixo que me enganem, que se esquivem, que se mudem para a Bahia, que é terra boa, sem deixar endereço. Tanto faz. Todo mundo se encontra no Farol, ou num terreiro, que é preciso temer a santeria. Mas guardo sempre comigo aquelas poucas palavras com que me sirvo para dizer a mim mesmo o que me ocorre dizer, salvo se ainda nisso me equivoco. E quanto mais simples as palavras, mais poderosas, mais originária e poderosamente poéticas. Abomino o hábito difuso em outras línguas como o italiano, o francês, o alemão e o inglês, segundo o qual escrever bem é eleger construções raras, à borda da ininteligibilidade. Nisso, brasileiros, lusitanos, espanhóis e latinoamericanos recebemos, pelas vias tortas de nossa incompetência, o tino de um instintivo senso de bom gosto: redigir bem é ser claro, pois a escritura visa à comunicação, e é, por isso, mais que qualquer outro, um ato de amor. Para que dizer cárcere, se os pobres pagam pela injustiça dos brancos na cana mesmo?; porque escrever libido, quando o que sinto se chama tesão?

Então me satisfaço com minha rala gama de palavras. Quem sabe um gênio maligno se divirta em me fazer imaginar que penso com meu parvo vocabulário o que penso que penso, quando o que cogito com ele é o contrário do que cogito de que cogito.? Mas, apesar de divertido o pensamento, é óbvio que palavras servem para veicular pensamentos, não para pensar. Ninguém, salvo talvez alguns enfermos, pensa com palavras. E ainda é correntio nos meios humanísticos que se assevere que a linguagem natural molda o pensamento, a despeito de todos os atinentes experimentos das neurociências apontarem contundentemente para o sentido oposto (refiro-me à a famigerada tese Shapiro, sufragada pela filosofia de poltrona de Quine e Kuhn, e até por um verdadeiro gênio como Caetano Veloso, que em certo verso insinua que só seria possível filosofar em alemão, o que é um ledo equícovo, não só porque pensamento nada tem a ver com linguagem social como porque, dos idiomas que conheço, o alemão é de longe o mais enquadrado e limitadoramente inexpressivo). Pensamos sim com meias-referências, implicaturas truncadas, raciocínios de hipóteses eleitas às pressas segundo um cálculo expedito de plausibilidade, enfim, por meio de uma linguagem do pensamento entendido como capacidade congênita de manipular de signos e não como mera fala ou produção numa língua social como o português ou o espanhol, e aceitamos as conclusões a que chegamos rotineira e instintivamente como provisórias, porque só fanáticos têm certezas, e a vida ensina que estas jamais duram o bastante. Há, a esse respeito, na literatura científica o registro de centenas de casos de crianças e mesmo adultos que, criados em isolamento, nunca aprenderam uma língua natural, ou melhor, social, pois a língua natural é a do pensamento (com que nos dotou a evolução genética), e que só aprenderam linguagens sociais tardiamente, quando puderam narrar aos investigadores suas vidas e pensamentos pregressos. A linguagem social com que nos comunicamos (o mandarim ou o inglês) são simples convenções sociais moldadas e aperfeiçoadas pela interação secular, e as quais simplesmente não teriam existido se não existisse uma linguagem do pensamento pré-moldada nos nossos cérebros, como etapa necessária para que possamos aprender qualquer linguagem social.

Anos sem conseguir publicar agastaram minhas relações com a poesia. Para que serve um poeta sem um público? Pois o que um poeta deseja é ter um público, ser ouvido, enfim, ter uma voz. Não para fazer dinheiro ou ser famoso. Quem quer fazer dinheiro não escreve poesia, escreve romances teens, trabalha no mercado financeiro, vende estupefacientes, se expõe num reality show. Um poeta quer simplesmente dividir com os outros aquele achado, quer propiciar aos seus semelhantes a maravilha e o prazer da beleza que ele por acaso descobriu. A poesia, repito, é um gesto de amor. Por isso, quem quiser ler estes ou outros poemas meus os achará abundantemente na internet. Por favor, os copiem se lhes agradarem, mostrem a quem, reescrevam se os inspiram.

Retomando a fiada, rompi com a poesia por algum tempo. As ideias, é claro, se avolumaram, e então me obriguei a redigir a ponta de lápis um desconcertante conto-novela, que prometo em muito breve converter em romance. Chamava A Gaiola, e inquiria se quem estamos na gaiola somos nós ao invés do periquito Getúlio, presos entre metas e expectativas no mais das vezes alheias e nunca genuinamente por nós mesmos elegidas. Alguns anos depois, sucedeu a viagem a Berlim. Toda a inspiração represada rebentou, e eu me revi em voltas da necessidade incontornável de reescrever poesia... O primeiro poema, escrito sob inspiração benjaminiana (estava eu diante das Passagen, assistindo ao seu ocaso ante à ereção dos malls e contemplando a felicidade posta à venda nas vitrines. Assistia às ruínas da civilização recicladas como cartões postais (a Gedächtniskirche, por exemplo, ou o Checkpoint Charlie), em frente às aras do Deus da Razão imolado como um herói inocente pela culpa de não saber ter culpa.

A influência de Benjamin, que então me embrigava, hoje me parece, sem pretender soar cínico (em que depois me converteria ao redigir meu livrinho predileto em homenagem ao meu colega de bebedeiras e intempéries Diógenes de Sinope), bastante curiosa. Ou simplesmente jovialmente romântica. Mas em nada prejudica os poemas escritos sobre sua inspiração: um poema tem sempre várias camadas, e é uma violência impor-lhes uma interpretação unívoca. Somos, também, afinal de fato muitos, os muitos que sucedem no curso de muitos dias, e a cada manhã morremos com tamanha assiduidade que, em um dia plano como qualquer outro, desaprenderemos a morrer. E é então que começa a verdadeira viagem. Porque a vida, a verdadeira vida, e o digo com mais credenciais porque nunca fui religioso e até hoje resisto em ser ateu, só existe na eternidade, mas isso só se compreende com o tempo, à medida que aprendemos a enxergar através dele.

Em homenagem ao poema que psicografara entre uma nevasca e outra e que reinaugurava minha atividade poética, resolvi batizar o livro que nascia Inverno em Alemão, com base em uma tardia tradução em inglês que vertera o título do primeiro poema do livro, Inverno Berlinense, em Winter in German.


Por Que escrevo Poesia?

É difícil conceber as dificuldades envolvidas em se escrever um livro de poesia. Na prosa, a narrativa conduz a imaginação do escritor e facilita a leitura do leitor. Já na poesia, cada palavra é pensada exaurientemente, e todo verso é por conseguinte absolutamente inicial. Estamos sempre de novo à casa zero, sem o suporte do que já foi dito. Conheço uma pletora de romancistas que nunca corrigem seus textos, o que me provoca certo horror íntimo. Mesmo entre meus prosadores prediletos, não deixo de me agastar com personagens deixados pelo meio ou com a sensação de que alguém que se propõe a escrevinhar trezentas páginas não tem total conhecimento de aonde quer chegar nem pode humanamente tratar a contento toda a pletora de informações que vão inevitavelmente se acumulando. Para um poeta, isso não tem outro nome senão desleixo. E, por isso, criado numa atmosfera de disciplina luterana, não tive escolha senão me tornar um poeta.

Mais difícil ainda é publicar poesia. É certo que a maioria dos livros que se dizem de poemas são blablablá oligofrênico. Isso concedido, que a maioria avassaladora dos leitores ainda assim prefira ler calhamaços de narrativas redundantes e mal-costuradas a ler versos dotados de uma concisão e profundidade que ultrapassam em proveito e prazer o conteúdo desses frankensteins me deixa indignado. Considerem ainda o fato de que um livro de poemas costuma ser mais barato e breve, poupando portanto o custoso tempo do leitor e lhe aliviando o bolso. Outro dom fantástico da boa poesia é o de aderir a memória: bons versos serão sempre lembrados. Já um romance, chegado à página quinhentos, o desafio para que me narre todos os eventos anteriormente sucedidos. Ao fim de seis meses, sua lembrança será nula. Talvez as linhas gerais, o nome de um ou outro personagem. Você inevitavelmente terá de se socorrer da sinopse do livro na wikipedia. E todo o tempo investido na leitura das alentadas páginas terá retorno zero.

Obviamente razões poderosas justificam o fenômeno dessa preferência da prosa pela poesia por parte do grande público. Primeiramente, o fato de a poesia ser inerentemente plurívoca. Ela exige a contribuição ativa do leitor para completar-lhe os sentidos, para derivar suas consequências, para trazê-la para a intimidade de seu mundo intersocial e pessoal. Já na prosa, o leitor vai sendo conduzindo pela história, mais ou menos como num seriado de TV. Por isso, Haroldo de Campos prenunciou a substituição da prosa narrativa pelo audiovisual. Receio que talvez lhe assista razão. Hoje medram os audiobooks, que são uma mão na roda para quem perde quatro horas diárias comutando de casa ao trabalho e inversamente nesta feia e dura flor chamada São Paulo.

Em outras palavras, o leitor está muito cansado ou assoberbado (eufemismo para preguiçoso) para ter que pensar com a poesia e prefere ser pensado pela prosa. Meus amigos sempre reclamam que eu nunca sou companhia para o cinema. Para ser franco, acho cinema uma linguagem para adolescentes, como a prosa é distração para quase-adultos. Passei da idade para ver graça em tais coisas, ainda mais por serem sempre tão redundantes. Quando me contam um romance, bastam três palavras, e eu adivinho o final. A vida ensina que as suas possibilidades, embora repetíveis ad infinitum, são esgotáveis. Isso Aristóteles lamentou na Poética. Mas essa limitação também é a condição para a possibilidade da busca da verdade, que é a investigação do universal. Abomino a vulgaridade dos fatos mas venero a beleza de toda teoria. De uma forma ou de outra, definitivamente, os prazeres da narrativa não são para mim.

Quanto ao prevalente realismo-psicológico há mais de século em voga entre os romancistas e tão apreciado pelos norte-americanos, não me parece nem realista nem psicológico. Não é realista porque baseado no obscurantismo de fringe-sciences como a psicanálise e a psicologia. É óbvio que uns 90% de nossa vida consciente e inconsciente transcorre sob o domínio implacável do acaso, e sobre ele não há mais a ser dito senão que acontece todo o tempo... Além disso, disciplinas mais sérias como a microeconomia e a biologia evolutiva ensinam mais sobre a atitude e a natureza dos homens do que essas empoeiradas especulações que confundem caráter com herança ou com circunstância. Do prisma mais estritamente artístico, investigar as pretensas ruminações de um homem qualquer invariavelmente esconde no seu pano de fundo uma trama deploravelmente banal. Não estou interessado como certo personagem prefere vestir o pijama antes de dormir, ou se fulana amava mais ciclano que beltrano com quem, por execráveis incompatibilidades sexuais, acabou não se casando... Ora, isso é problema privado deles, desculpe, não estou interessado.

Para piorar o quadro, mais artificial que uma narrativa do tipo la marquise sortit à cinq heures é tentar camuflar o artificioso da prosa de ficção através de expedientes de fluxo de pensamentos, diletos das vanguardas velhas e novíssimas: como expliquei acima, ninguém pensa com palavras, disfarçar as convenções da narrativa fazendo os personagens falarem consigo mesmos é tão fabuloso como marcar os intercâmbios de um diálogo dizendo que fulano se retesou ou mudou de tom. Tudo somado, não acredito em realismo psicológico. A verdadeira literatura bebe do fantástico, do tesouro atemporal da saga humana e que hoje se desdobra na ciência-ficção, ainda que falte no mais das vezes talento estilístico a seus autores, mas que cumpre ainda assim o papel de fonte de novos caudais de reflexões e desafios... Quanto ao artificialismo, a poesia o assume como seu instrumento e não sente honestamente vergonha disso. Nunca procura parecer o que não é nem poderia ser. A poesia se pretende um artifício porque toda obra de arte o é. As Cataratas de Iguaçu são inefavelmente belas, mas isso não as torna uma obra de arte. A arte é fruto do trabalho do homem, é portanto um artefato, um artifício.

Em segundo lugar, a par da maior exigência de um livro de poesia em face dos leitores, reputo que estes devam também preferir a prosa de ficção pela razão de que escrever boa poesia é tão dispendioso, consome tantos anos, que é natural que existam muitos mais bons romances que bons poemas. E, desta maneira, a oferta determina a demanda, e a demanda determina o hábito (meu raciocínio econômico aqui é intencionalmente heterodoxo, por favor, nunca levem à risca o que digo, desistam de adivinhar quando falo sério ou apenas provoco). Daí porque não deveria ser tão chocante que eu tenha levado dez anos para conseguir, sabe Deus sob quantas tribulações, publicar este volume. Mas basta com as minhas ladainhas, vamos ao livro!

Um Livro em Três Metades

Reuni os poemas que compus durante o período de 2001 e 2005. O capítulo inicial, escrito entre 2001 e 2003, têm dicção pós-moderna e às vezes quase-falsamente-prosaica. Diálogo com escritores e poemas predecessos. Sinto a influência de meus diletos contemporâneos, de minha paixão por Fernando Pessoa, de Décio Pignatari e dos irmão Campos, do meu genial conterrâneo Paulo Leminski, da imagística americana e do irregular mas decisivo T.S. Eliot. Esses poemas, que exploram as possibilidades da linguagem e da prática poética, reuni num capítulo denominado Variação e Recorrência (para os menos nerds, essa é uma das definições de "poesia", embora a que eu prefira seja a que a conceitue como a crítica da vida - "the criticism of live", Matthew Arnauld: e que belo achado, tiro o chapéu!, quer dizer, o boné, pois, se a definição não for verdadeira, é bem inventada!). Em último juízo, o capítulo trata do fazer poético e é, portanto, um exercício de metapoesia.

A partir de 2003, acometido por um arroubo delirante e maníaco, decidi que já havia contribuído o bastante com o cânon ora dominante, e que havia mesmo progredido para além das cartilhas com algumas radicais intervenções pós-pós-modernas no anterior O Céu das Ideias Fixas (por exemplo, alguém me explique as descolagens, citações falsas, contra-homenagens, paródias sinceras e anacronismos de Os Dias Árabes, por exemplo). Resolvi então desafiar o regime posto, escrevendo poemas sobre aqueles temas acima de todos execrados, ridicularizados, desconsiderados e proibidos: o amor e a solidariedade humana.

Primeiro vieram os socialmente engajados, que não me ocuparam muito,
talvez seis meses, e que renderam poucos exemplares. Me vali das lições de Gilberto Mendes Teles, Affonso Romano de Sant'Anna (poxa, que nome bonito!), João Cabral de Mello Neto, Eduardo Alves da Costa, Bertolt Brecht, Vinícius de Moraes, Sophia de Mello Anderson e Carlos Drummond de Andrade. Reuni-os no capítulo A Existência Consentida, frase essa que ocorre num trecho de um dos meus versos.

Finalmente, entre 2003 e 2005, me dediquei a escrever poemas de amor. Compõe a alma deste livrinho. São versos sobre amor amical, filial, sensual, circunstancial e mesmo incondicional. Tentei esgotar todas as tradições metafóricas a respeito do amor, na medida das minhas capacidades, é claro. As fontes são inesgotáveis: Platão, Drummond, Vinícius, o monumental Lêdo Ivo, Pablo Neruda, Chico Alvim, e.e.cummings, Sappho, Rainer Maria Rilke, tantos e tantos mais. Ao título do capítulo só cheguei este ano: Manual para Amadores. Penso que modestamente possa contribuir para uma espécie de educação sobre o amor.

Procurei manter a ordem cronológica segundo a qual os poemas foram escritos. Ma com duas importantes exceções: primeiro, às vezes alterei tal ordem, com o intuito de melhorar ou facilitar sua recepção (alternando poemas mais ligeiros com mais graves, por exemplo); segundo, inverti os capítulos segundo e terceiro, para poder dar ao leitor o vislumbre de que há várias formas de amor, e que, talvez, a mais bela, seja a que chamamos solidariedade ou amor à humanidade e às formas de vida. A par disso, há neste volume um considerável montante de poemas escritos em outras línguas que não o português. Nesse caso, não quis aborrecer o leitor apresentando-os misturados aos demais, coloquei-os simplesmente na tradução portuguesa que eu mesmo providenciei. Insisti em mantê-los primeiro porque ao fim realizei traduções que me soaram ao menos satisfatórias, mas sobretudo porque alguns compõem a própria ossatura do livro e, à sua falta, talvez a este Inverno faltasse ainda por cima um coração. As versões originais seguem num apêndice final, a quem interessar possa.

Bajulações de Praxe

Estive gravemente doente a partir de 2005 e não fui digno daquele amor incondicional daqueles a quem sempre me dediquei e com cujo apoio acreditava merecer contar, amor cuja menção tantas vezes ilumina estes poemas. Deixem estar, não sou do tipo rancoroso, águas passadas não movem redemoinhos rsrs, e, balanço feito, é preciso saber amar, mas também é preciso saber escolher a quem. Mas sempre tive o amor dos cães como todo solteirão, em especial de meu filho Límiti, sob cuja inspiração eu escreveria na sequencia meu ditirambo em homenagem às matilhas dos cínicos viventes e extraviados (Invitation to an Island). Mas asseguro que não sou desses mal-amados que se refugiam no convívio com animais por rancor à humanidade. Amo tanto os homens que lhes estendo este resultado de meus esforços e espero com avidez a generosidade de suas críticas pertinentes e mesmo destrutivas. Que escutem um pouco da minha voz, que é o maior presente que podem me oferecer. Se divirtam e que a felicidade, que se diz só bater uma vez a cada porta, se engane de endereço e os abençoe repetidas vezes, meus irmãos!

Agradeço ao meu melhor amigo, o tempo, o qual me permitiu melhorar incansavelmente estas linhas, mas me arrogo nesta oportunidade a propriedade inalienável e intransferível de todos os desacertos, desleixos e exageros que possa ter cometido.

Nesse ponto, noto que abomino as tentativas da autoridade política em decidir acerca da correta ortografia das palavras. Costumo me ater a essas regras autoritárias apenas para não colapsar o sistema informacional de meus solícitos editores, mas o complexo ortográfico imposto pelos políticos é tão inconsistente que é impossível deixar de incorrer em supostas incorreções. Tarde demais para uma reforma: com a difusão da educação, nossa defeituosa escritura se solidificou irremediavelmente. Mas há sempre brechas. Por isso, confiem em mim: meus aparentes erros são na verdade acertos de quem venera e compreende mais a língua que um burocrata ou um douto fossilizado. Um idioma pertence ao patrimônio cultural de um povo, não pode ser decidida por decretos, nem tem ninguém autoridade de impedir ao criador ousar os desvios que julgue interessantes ou necessários. Previno, enfim, que me repugnam os solecismos lógicos e verdades contrafatuais da gramática de estilo, que não merece a consideração nem sequer de uma inteligência modesta como a minha.

São Paulo, 24 de setembro de 2011.

P.S. Aproveito ainda para esclarecer que pequenos números claros postos ao lado das estrofes não indicam contagens de linhas, mas sim o metro dos respectivos versos. Assim, um "12" ao lado de uma estrofe significa que a stanza é composta de dodecassílabos. Quando há cesuras ou quebras, são indicadas apenas para o verso em questão, não valendo a observação para o resto da estrofe. Alerto que minha metrificação obedece a critérios contemporâneos e ao verdadeiro jeito com que falamos português no Brasil, da mesma maneira como, quando metrifico em francês não conto sílabas mudas pela singela razão de que, em detrimento da empoeirada tradição, elas simplesmente não existem. Então porque eu, que não tenho o dom de ver fantasmas, me daria ao trabalho de fingir que tenho clariaudiência espectros? Como exemplo, cito os “haches aspirés” (como em “hauteur” ou “héros”, que não poderiam ser elididos com uma vogal anterior porque seriam aspirado, como o “h” inicial do alemão..., surreal, não lhes parece?, embora tais aspirações não sejam mais pronunciadas há mais de trezentos anos, e o caso todo só pode mesmo ser atribuído a um velho complexo de inferioridade de meus parentes franceses em face dos alemães (logo de quem!, mas gosto não se discute...). Ou então os “e”s átonos finais, e às vezes intersilábicos, que não são pronunciados, como o “e” de “je” ou “carrefour”, salvo numa tosca e exagerada pronúncia parisiense. O mesmo ocorre em português, observem: o verso “poetas tradicionais se reúnem em saraus”, quantas sílabas tem? Obviamente se trata de um dodecassílabo e ainda alexandrino com acento agudo na 6a: “pwe-tas-tra-di-cio-náis-se-rew-ne˜-nhem-sa-raus” (por “w” denoto não o “u” que no português usamos em sílabas tônicas, arredondado e bem articulado, mas o que pronunciamos em sílabas reduzidas, como os “os” finais das palavras paroxítonas, e que mais se assemelha ao ”u” de “Maus” em alemão ou “good” em inglês). Agora me digam quantas sílabas contamos em “ele cursou a faculdade de medicina”? Temos de novo um dodecassílabo, com acentos na 4a e 8a, pelo simples fato de que a última sílaba de “faculdade” é foi e será sempre muda. Diga a frase em voz alta e ateste como não digo nenhuma asneira. No caso do inglês, havendo uma abundância de alófones, me sirvo do que melhor convém ao verso em questão (assim, ‘beer’ pode valer, conforme a conveniência e a altura do colarinho, por uma ou duas sílabas (“bi:” ou “bi:â”). Já em italiano, espanhol e alemão, a metrificação tradicional conserva em linhas gerais sua validade, salvo no caso das terminações do infinitivo alemão que, por fidelidade à pronúncia real, deve ser ignorada, pois significa um mero ressoo nasa e não uma sílaba distinta (assim, o verbo “warnen” é, a despeito da aparência, uma oxítona e pronuncia-se corretamente “va:ñ”), considerando-se ainda que o “e” final átono em alemão pode ou não ser reduzido, indiferentemente: tanto “hét” quanto “‘héttâ” são alófones válidos para “hätte”. Peço desculpa pela maçante digressão técnica, mas é sempre bom se precaver contra os chatos de plantão, os quais, por estranha coincidência, costumam ser exatamente aqueles pseudo-intelectuais menos cultos e informados.


Thursday, January 12, 2012

O BEIJO


O beijo é alheio ao corpo
que beija.
É vão buscá-lo na saliva que deixa,
na cicatriz imperscrutável.
O beijo foge,
e outra boca o colhe.

Deve restar à faca do instante ileso,
no contínuo do tempo que em vão compartimentamos
nos calendários de nosso invento,
em algum confim inatingível
da eternidade rápida e perecível
que é o tempo e o lugar do beijo.

Ali se banha adoçado
no sal dos suores,
pois embora estoure oco e áspero,
quando adeja no céu azul do palato,
a língua revela-se
veludo ao tato.

Por isso, sem ser gasto no atrito dos contatos,
o batom ficará no lábio incrustado
como um peircing, como um ácido.
Ficarão o pudor e o abraço,
ficarão as mãos ainda atadas,
a trava no gesto, o turvo na fala.

Ficarão os vincos na cama,
e o gozo no grito e na pele de quem ama.
O gosto do sorriso ficará e a febre rouca,
o beijo continuará gravado na boca,
uma tatuagem, um desesquecimento
na memória corpórea do momento.

Monday, January 9, 2012

PERDOAR


Perdoar é uma espécie
parasítica da desídia.
É distração da vontade,
é um esquecer por querer.

É quando caímos e nos rodeiam,
e com um sorriso contestamos,
pois, se doeu, não dói mais
o lanho que na pele não fecha nunca.

Perdoar é silêncio articulado aquém da fala,
é nó que não desata mas acostuma,
e deslembrados de lembrar o omitimos
da curiosidade doentia dos formulários clínicos.

Perdoar é o viço da primavera que revestimos,
morte e sombra nos temperaram, mas resistimos,
pois estamos sempre ressurgindo
como as estações e os domingos.

Porque pesadas de remorso as pedras não cantam,
e o acaso premeditado já não despede signos,
lavo-me do pó daquele homem antigo
pra renascer, inocente como um menino.

Sunday, January 8, 2012

DIA DE MAIO



dia de maio,
chocando a pino nas esquinas,
sem a greve de sexo inconcebida
nem a prometida revolição dos humores.
somente a justaposição
de umas pernas que vem e que vão
e, terminados os trabalhos,
sentam-se em viaturas lado a lado,
às vezes sequer se conversam,
senão ruminam uns segredos de polichinelo
com a solenidade de um relatório de cisão.

não a subtração de algo que nos pertencesse
ou tivesse se perdido como um guarda-chuva
(e ninguém fizesse caso),
não o sonho que em sua língua de milagres
mostrasse o caminho ao sentido
ou ensinasse a viver mais.
porém uma tropa de incêndio que avança contra o tráfego,
os direitos escalavrados em nome do bem geral,
a adolescente que se picava de vez em sempre,
os pais poupados pelos parentes -
por favor ninguém pergunte.

a soma de todos os males,
os naturais e os humanos,
os males de exceção e os males prosaicos,
os por engano e os farisaicos,
os males não-revelados e os prontos ao consumo,
ou apenas mais um
dia de maio fluindo
anêmico como o jornal sem notícias,
trivial como cadeira ou copo,
mais gênero que instância.
sem qualquer traço incomum.

distendo a vida entre dois confortos duma vida pequenamente burguesa,
me digo que quanto importa é eu estar vivo agora,
sou errado e me entendo com os meus sentidos,
que tenho eu justo eu justo eu a ver com tudo isso?
o dia logo será amanhã, e eu também outro.
como fazer renascer de si mesmo o dia de maio
que nos escorre das veias e que morre aos poucos?
mas, sem sangue sem substância, talvez nada haja
atrás dos gestos e palavras, talvez não haja o dia senão como signo:
as inscrições parietais de um mundo caduco
para remotos escafandristas já desaprendidos de enxergar.

A QUEDA



Seria doce fardo a lembrança nos fosse dado,
expulsos no encalço de novos fulgores,
acariciá-la e deitá-la entre grinaldas e flores.
Como se algum elo ainda enganchasse o nome com as coisas,
e amar não fosse uma transcendência a fundo perdido,
um salto sem redes no abismo.

Mas uma curva inopinada insinua no jardim seu onduleio.
Pairam na inspeção árvores coalhadas de angústias,
que, na sedução do perigo, nos ensinam o bem do mal,
para depois se consumirem em fogo de devaneio.
Como nós, já não podem ser salvas,
e troçam e rejubilam da nossa total falta de meios.

A rede elétrica traz de longe a noite pelas ruas que se acendem.
Posso então ouvir dentro de mim o rancor de um gesto incompetente,
um sorriso que não se abriu, abraços baldios que não se fixaram.
Meus olhos saltam das órbitas celestes para me acompanhar na queda,
agravando o voo voluntário e livre com a consciência
também pesada da queda.

E nas regiões do meu corpo onde alguma lucidez resiste –
unhas, sombra, cabelos - que, mesmo mortas, persistem,
uma nova ciência se grava,
tornando amor objeto ainda mais triste,
enquanto, fora de nós, uma vida, apressada,
ainda passa e não pára, como se não nos visse.

A SEGUNDA MORTE



Ele veio num dia como qualquer outro.
Quando chegou, trazia os trapos mais rotos.
No gosto, era doceamargo, diferente de tudo que eu tinha provado.
Se eu marchava sozinho, eram os seus passos que nos meus pisavam.
Se eu dormia, e o mundo me esquecia, seu sonho que o meu vigiava.
Eu não sabia dizer o que seus silêncios calavam,
o que o seu gesto ao meu acrescentava, como o copo à água.
Não sabia quem ele era, mas há muito o esperava.

Aos poucos, pôs vozes em todas as coisas
e deu aos caminhos mais que direção – desatino.
Penso agora perceber em tudo o que vejo
motivos incomensuráveis aos que dizem os sentidos.
Hoje sei que há sob o sol coisas que em tanto conhecermos
jamais se explicarão.

Um estampido de tropel correu o descampado.
Me abalei sem bridas para ter com os chegados.
Um corpo estribava um cavalo esbaforido:
era o mensageiro, eu me ouviria em outros lábios.
Levantei-lhe o capuz, e não tinha um rosto.
Retirei-lhe o manto, e estava morto.

Rasguei o chão, arranquei os pêlos da terra em desespero.
Era ele, o eterno encarnado no rubor humano, o enviado
demasiado tarde. E agora não havia mais como salvar-se.
Pensei: não há razões para este mundo.
Ou antes, deve tê-las. Não é difícil que as tenha.
Mas uma coisa é sabê-las. O pior, o terrível é,
as conhecendo, poder vivê-las.

Meus gemidos e lamentos amoleceram as próprias pedras.
Depois, voltei aonde era.
Desconheço seu paradeiro, imagino tenha buscado outro jardim,
onde, ao sol poente, o sal da terra, mais lúcido, reacende.
Hoje o reconheceria, se reaparecesse.
Mas isso são fábulas que conto
de mim para mim mesmo,
quando é noite madura ou quase dia,
e dormir não tem mais jeito.

Agora devo ir as mesmas estradas,
e voltar a calcar aos pés o vazio do mundo,
sem pensar aonde vou sendo levado
em meio à voragem das cidades e às alucinações dos homens.
E fingir serenidade por onde passe
como se a tarde não enlouquecesse
e as pedras não despertassem.

Dessa mensagem dependiam o ainda e o sobreainda.
Ficou para sempre perdida, e o caminho a percorrer,
privo de rumo, não tem mais fim.
Melhor seria não o tivesse jamais visto.
Não creio que um segundo morto a repita para mim.

Saturday, January 7, 2012

ENQUANTO O AMOR NÃO VEM



existe vida antes do amor?
as opiniões contendem
existe vida depois do amor?
por favor não me lembrem

mas enquanto amor não vem,
a flora do sexo enlouquece e se esparrama,
enquanto o amor não vem,
mente pior quem mente virtuosamente e não se engana

enquanto o amor não vem,
hespero,
enquanto o amor não vem,
bolero

enquanto o amor não vem,
há malas que vêm por trem,
enquanto o amor não vem,
augusta a mais de cem

enquanto o amor não vem,
a solidão ao menos me acompanha fielmente,
enquanto o amor não vem,
há silêncios que nos pesam falazmente

enquanto o amor não vem,
que seja logo,
enquanto o amor não vem,
autófago

mas que venha, ainda que seja tarde,
pois mais sagrada e secreta é a noite
se a trazemos dentro de nossos olhos
onde se esconde enquanto o dia arde

mas que venha, seja cedo ou seja nunca
envolto em luz ou disfarçado em bruma,
e que seja translúcido e a coisa mais turva,
e que seja tudo e também coisa nenhuma

Friday, January 6, 2012

CONSOLACAO DA POESIA


I

É meio dia e o andor das horas arremata
no céu um arco infinito
sobre o teto inconsútil de São Paulo.

Mais que palavras, gestos maduros se despegam dos muros
tatuados que separam propriedades,
corpos, liberdades de ir e vir, soberanias.
Mas o tempo é rápido e logo nos ultrapassa,
e assim, se quisermos alcançá-lo,
melhor ajustarmos os passos no percurso,
sem desatarmos ou divagarmos muito.

É preciso que almoce, que saia a passear
o cachorro e a minha estultice,
e vá ao obrigatório mercado, dever de quem convive.
Pois somos, para além dos utopismos, no fundo mesmo iguais,
sentimos todos fomes, tesões, apetites de beleza e justiça,
e outras circunstâncias que moldam a dita
essência humana ou a sua falta.

E é por necessidade que somos iguais,
e só nos distinguem contingências superficiais
de cor, gênero ou crença, camisa e camada sociais.
E vamos todos à praça,
e tudo quanto se faz é projeto ou herança nossa,
e tudo o que se diz ou omite nos interessa.
Então me apronto depressa
para logo poder me encontrar
também perdido entre tantas andanças.

No caminho sou atropelado por multidões de homens apressados.
Seguem pra qualquer lado, mas não estão lá aonde levam os caminhos,
e às vezes até sorriem, mas não há ninguém sob o sorriso.
Reflito que não gosto dessas vias de penumbra porque prefiro
a luz plena do dia às cores falsas dos anúncios,
e a claridade ambígua das vitrinas
derrama nos olhos uma areia invisível
que interdita a solidariedade e os espelhos.

Mas não pretendo outro mundo, pois já me ocupo deste,
como não invejo o céu, que já o tenho sobre a minha cabeça.
Não busco tampouco a sombra,
que mantenho pendurada comigo
para o caso de excesso de paz ou de perigo.
Ainda parasito a minha carne, é quanto importa,
e sigo afundado na terra até o último fio de cabelo,
condenado ao mundo em que assisto
nas ruas de torpor e de vidro
ao sono dos corpos desocupados
dos que não ainda não despertaram.


II

Retorno à casa que todos abandonaram.
Prova da cabal imprestabilidade dos agentes imobiliários.
Já não abriga corpos, agora
teima em alojar memórias.
Tem motor e vontade próprias.
Se pombos se aninham nos vãos das horas,
é que uma sombra maior
igualmente não pesa
e da janela se evola.

A luz da cozinha eterniza
um convívio metálico no vazio
da mesa esquecido.
Ecos esporádicos repetem
o oco dos armários.
Na escada, rangem os degraus
mesmo sem os passos.
Num corredor um vento se instala
em hóspede definitivo,
a despeito das portas e do hábito
congênito de isolá-las.

O chuveiro espirra a água
em vez de guiá-la na queda,
e seria tão simples repará-lo
– no entanto, ele persiste
cada vez mais intratável,
a despeito da arte dos hidráulicos
e das tentativas impacientes
de um ou outro visitante desavisado ou tacanho
que resmunga, se desespera,
amaldiçoa o dever do banho,
para logo esquecer a mácula
no afã hercúleo de descobrir
no emaranhado das torneiras a que guarda
o enigma esfíngico da torrente cálida.

Há ritmo que sai dos dutos do banheiro,
dos cães do quintal.
A casa inteira é uma orquestração
de guinchos, estalos, balidos e chilreios
em perfeita harmonia musical.

Eu sou o fantasma com pretensões de título.
Eu sou o ruído.


III

Se cartas me procurarem, pronto as despeçam,
que não estou para elas, como para ninguém.
Exonerem o carteiro com um sorriso e um estalar de língua.
Digam-lhe, à míngua de melhor, que me extraviei a mim mesmo.
Como se perde uma bala no tiroteio ou uma agulha no agulheiro.
Como nas desavenças de amor, se perde fácil a razão,
ou como se desencontra um cachorro na distração do passeio.
Ou como a compaixão, por excesso, se perde em indiferença.

Se amigos telefonarem, informem
que não os quero preocupados com a minha ausência.
Não poluam meu retiro com bulício de busca.
Que os pássaros silenciem a tarde,
e todo barulho se guarde para os ouvidos surdos das paredes
ou para a curiosidade atávica dos vizinhos.
A amizade obriga, mas hoje eu quero estar sozinho.

Preciso estar só para que, quando retorne,
reconheça como suas as cores que ainda vejo,
pois não irradiam de mim, que sequer as mereço,
mas que só em vocês me sorriem.
Mas a solidão é pelo menos a metade da condição nossa,
e agora é preciso ir-se acostumando,
tempos virão de braços que se espedaçam e de olhos,
outrora canoros,
que não cantam mais nem jamais se encontram.

Não me esperem.
Se têm de partir, não se detenham.
Um dia a messe sucederá ao canto,
mas agora tudo o que existe é a sua falta.
Consolador, o silêncio, talvez, nos minta.
E um suor nervoso e frio orvalha das palavras.
Estão cegas, perderam os sentidos,
e se lavam dos nossos erros,
à espera das manhãs
que não amanhecem ainda.


IV

Admito que os homens não são feitos para ouvir como uma concha,
nem usam devolver em amor o amor que lhes é dado.
Mas sabem que assassinam as coisas com que lidam,
e têm que soletrar o mundo para comprar o dia.

E quem sabe uma amargura percorra
a trama mesma dos nossos gestos:
nossos atos, como causam dor,
mesmo inscientes ou involuntários,
como o mal é banalmente necessário,
enquanto o bem parece mais uma bravata,
uma casa, bela, mas sem chão.

Mas poderíamos ao menos equipá-la
de uma necessidade fática,
não legislada ou formal,
concreta, como xícara ou faca,
ao invés de ficarmos mascando
o remorso de um filho que não planejamos,
e na bruma donde nasceu de si mesmo,
não pudemos ou não quisemos vertebrar.

Mas dormindo o sono das idéias feitas,
descansamos numa paz que é menos
prêmio que renúncia da verdade:
a paz sem paz, o calar das armas empunhadas,
a paz dos vigilantes nas calçadas,
a milimétrica e ubíqua
paz capitalista,
a paz dos desinformados,
a paz de ambos os lados
do muro, nas pás dos jazigos,
a paz que jaz. Não há de ser essa a paz
que vai nos dar abrigo.

Por isso, volto sozinho à exorcizada mansão dos mitos,
onde uma fresta porosa de claridade talvez despertasse
do sepulcro infinito das possibilidades
o fantasma proscrito de um mundo esquecido.
Dizem que fantasmas não são mais possíveis,
mas suspeito que muitos desses ainda sonham em nós
e nos conferem sua hipótese de vida.
E que numa manhã voltarão a assombrar-nos,
mesmo que por acaso e a despeito da nossa aversão ao contato,
ainda que por exaustão ou falta de assunto.
E nesse dia estaremos finalmente juntos.

SÃO PAULO



Apartamento, dois quartos apertados, setecentos
e cinqüenta reais por mês, fora o condomínio, e mil
razões para perder o juízo: miudezas de bricolagem,
arranjar fogão e fiador, mudança em duas viagens.

Jardim América, Pinheiros. 10 minutos de caminhada
para o metrô, não seriam nada, não fossem seis quadras
de descida e subida, e cocô de cachorro na volta e na ida.
Um ponto de táxi colado, uma padaria na esquina.

Disseram que em nenhum lugar seria feliz como em Campinas,
mas para ser pleno talvez não bastam dias de sol e casas com piscina.
Estatisticamente mais seqüestros que assaltos à mão armada.
E eu meio louco mas todo endividado, já previno que não trago nada.

São Paulo, 12 milhões de habitantes e nenhum amor para mim.
Nas cadeiras da Paulista eu espero o trem, a bebedeira chegar.
E quem resiste ao rebite de dois pastel com um chopps?
É tarde, tem a velha, moro longe. Então tá, espera um táxi passar.

Os olhos de vidro da cidade me acendem o caminho
quando é noite ou quase dia, mas já há a demora cubana
da fila indiana de carros, e um oceano de gente
feito ondas que vão e que vêm sem um mar.

Embrutecido num trânsito pânico, me desperta a garoa,
ou se fico cinza de tanto cimento, São Paulo me atordoa
com um torpor de lança-perfume de fumo e gasolina,
e com confetti de lixo picado São Paulo me serpentina.

Para mim será sempre a mais bonita,
não importa quão desalinhada ou ríspida.
Recebe esta carta de amor, ó feia e dura flor,
hoje São Paulo é o meu amor.

FOLHAS MORTAS



Novembro nos carpe em São Paulo,
e as janelas tremem de medo. Novembro põe
as árvores para dançar, arranca
os dias das folhinhas.
Uma chuva fina
orvalha dos nossos corpos e nos lava
da argila mais antiga.
E vamos despegando aos poucos,
até jazermos amontoados como gerações de folhas quedas.
Mas logo nos remoldamos em barro e cinza,
para rompermos das sombras, quem diria,
revoando rumo ao meio do dia.

Novembro se condensa em São Paulo,
enquanto cumpro aprumado a rotina
da espera de um sol
que não se anuncia.
Estes versos são testemunha
esquiva, empedernida,
do que seria secura, mas é só usura.
E por isso se digerem duros,
e por mais que os desejasse frios e mudos,
aí é que gritam e descem mal,
rasgando-me a garganta com suas unhas
mais incômodos do que nunca.

Novembro se esquece em São Paulo,
e não guardamos lembrança de nossos sonhos e mentiras.
Dormimos em soldados inertes, prostrados das batalhas perimidas.
São milhões de intifadas diárias nunca tentadas, quem sabe sequer queridas.
E quando despertamos, a manhã nos colhe em mangas de camisa,
e é preciso suar o dia para trocá-lo em seguida
por dinheiro, que avilta, mas que entre nós significa
existência consentida, em regime de urgência;
liberdade, que é possibilidade pura, à venda
em termos de oferta e procura; e dignidade,
que, a despeito dos discursos, é no fundo
ter como ir e onde pagar.

Novembro increspa em São Paulo,
mas o mesmo vento de novembro
que estiola as palmeiras e retorce
o esqueleto dos espigões mais altos,
novembro bramiu em mim uns aços inopinados:
em algum lugar eu gesto um diamante,
em algum lugar eu preciso ser
de fortaleza mais que inquebrantável
e do mais puro valor.
Novembro venta em São Paulo,
mas nós nos inventamos
um pouco a cada dia.

CARTA AO MEU PAI



Meu pai, tudo o que neste mundo não lograste
construir, para mim não resultou perdido.
Conservo-o por medida dos meus desandares,
pois só por desencontro é que ainda prossigo.

Cuidavas em usar teu tempo a erguer no mundo
um jardim que um sol mais lúcido fulgurasse...
Mas em volta cresceram muros surdos-mudos,
e a pouca luz que suamos nos cegou mais tarde.

Mas não sei detestar esses que me cuspiram:
isso aprendi contigo. Quero-os como tu,
mansos e ubíquos, pois nunca conheceste o
fruto da rispidez com a qual te serviram,

e, por isso, pudeste te encontrar ao espelho
sem rancor ou desprezo: pois foste, a despeito
de tudo aquilo que poderias ter sido
o melhor perdedor que teria vencido.

Wednesday, January 4, 2012

PARA UM QUARTO DE HOTEL



nós somos as obras e sobras do amor.
suas segundas intenções ardem em nós,
acendendo
a matéria mesma de que estamos desfeitos:
solidão e desejo.

cambaleantes,
como devem os amantes,
abandonamos os nossos corpos
como deixamos este quarto
- amor, pegou as chaves do carro?

em um mundo tal o desconhecemos
uma paisagem faz demonstrações de escapismo
diante da inexpressiva desatenção de um vidro.
nele reflito sobre este momento
que se olha na pele de uma lagoa

onde se banham
as imagens de todas as coisas
paradas ou moventes
- tanto os que viveram em pecado
quantos os que morreram com rigor

flutuam afogados neste imenso
céu interior:
a água
o caminho sem odor
que nos caminha entre os dedos.

eu o tento capturar mas,
tão esquivo quanto a sua sombra,
este momento
nunca afunda suficientemente lento,
se dissipando rápido como seu reflexo quebrado.

cedo ou tarde, alguém me consola,
nós o perderíamos por inteiro,
nas errâncias da memória,
sobre um banco público em diversos lugar e tempo,
como os casuais efeitos secundários

de uma eternidade à qual
nossas almas não querem aspirar.
a viagem seguirá
jornada adentro
de nenhum olhar.

mas nada custa tentar,
e agora, rodando ao longo dos rastros
de um muro de contenção,
não somos outra coisa senão
as alucinações de um lago.


Tuesday, January 3, 2012

O DIA EM QUE O PADRE NÃO FOI PRA MISSA



No dia em que o prefeito se elegeu,
Mandou tocar a banda e dançar xote,
Até quem não vivia se mexeu,
Até a beata bebeu feito um pote.

E a cidade acordou, mas que moleza!
Chama o padre, quem sabe que horas deu?
Cadê o homem? Fugiu com a francesa,
Que ontem dançava e que hoje escafedeu.

Quanta libido desnormalizada,
Quanta novena sem ave-maria!
Tanta alma justa, por venal preguiça,

Não pôde ir para o céu porque a coitada,
Bateu as botas justo nesse dia -
- o dia em que o padre não foi pra missa.

EROS PTEROS


Quando é escuro fora de nós,
e os corpos é que acendem,
esgotadas as possibilidades dos sentidos,
duas solidões se tateiam
e coalescem numa unidade a dois.

As intenções não tardam em virar coisa,
palpáveis como um abraço.
Uns gestos se procuram, outros se espedaçam.
Um beijo aguarda paciente
o momento de encarnar-se.

Nos despimos da própria sombra,
que como fardo nos curvava à terra,
e nada mais nos resta
a não ser o desejo, a falta do que não somos,
o que sempre fomos.

Receios dissipam sua lembrança no ar.
Abaixo, sobre os troncos bicéfalos deslizam
sal e mel das efígies
que falam sem se falar
seus silêncios de esfinge.

E o que dirão de nós?
Agora que somos deuses,
agora que somos fracos?
O que direis, ó línguas faladeiras
que nos percorreis a boca, a garganta, os ouvidos,

nos roubando as vozes que nos escorrem,
para dá-las ao vento que a dilui
nas mil falas do esquecimento?
E é tamanha a distância que nos move
que secamos mil vezes à beira do poço,

e sorvemos da própria sede
que surde em nossa pele e nos converte
em fonte inexaurível um do outro
onde sem jamais nos saciar
nos dessedentamos sem cessar.

Nossas caras não se fixam, são feixes de máscaras.
Nossos peitos não crispam, são balões acústicos.
E seguimos a um ritmo zunindo,
graves e proparoxítonos,
instrumentos do canto que nos tangimos.

Nosso baile embala e embaralha os astros,
enquanto, malgrado certo descompasso,
os nossos passos
penduram no firmamento um infinito arco
rumo a um céu ainda mais alto.

Teus cabelos vertem em viagem insensata
pelas conchas das mãos suas negras águas,
que nos afagam e nos afogam
num breu abrupto de todos os signos.
Já nossas almas os ultrapassam,

vibram
numa velocidade fantástica
e percorrem mais rápidas
que a luz o trajeto de Meríope a Alfa de Centauro,
nos derretendo na cama deitada sobre o quarto.

Até enfim jazermos alheios ao mundo e a nós mesmos,
mas plenos e mundanamente crentes
em qualquer coisa que não somos nós
mas que, breve, nos pertence,
e a que pertencemos incomensuravelmente.

Embora juntas as mãos em gesto piedoso,
não há luto. Assim como quedamos,
indiferentes à nossa imolação,
estendidos sobre o chão,
somos um só afeto elementar,

que na quietude repousa o sono
dos que não ousam despertar.
E, contudo, uma chama ainda nos inflama
e realiza em nossa matéria diáfana
uma palpitação secreta de asas.

Não houve troca nem barganha, neste jogo
o que um perde, o outro não ganha.
Um torpor sepulcral nos veste
de uma nova inocência e garante
o equilíbrio geral do além-gozo,

onde sem solução não sencomunicam os instantes,
nem são proferidas as diminutivas fórmulas
que só escutavam os amantes.
O sangues ainda resvala,
mas espesso, rascante,

como dormitam os membros
que vaivinham antes.
E é tão esquiva a lembrança!
Onde a paz buscada e só de relance avistada?
Onde o país que em transe nos fugia com as estradas?

Pois somos de novo os dois a sós, mais nada,
exatos e escassos como antes,
nem melhores nem piores,
apenas sobrantes a toda explicação sonegada.
Onde o tudo neste nada?

Mal a eternidade nos roça, e o tempo nos acorda.
O olho do sol volta a vigiar zeloso sobre o mundo.
A manhã arredonda nas pupilas, aos poucos
recobra-se o fio esgarçado do dia,
e nos separamos sem achar-nos um no outro.

Despertamos sem despertar,
nos mentindo sem enganar,
voltando às mesmas rotas,
ainda estranhamente virgens.
Até que venha nos acossar

um desejo novo de de novo desejar
outra paz narcótica,
outra foz e outra origem,
em que baste sem nos bastar
a nossa quota de vertigens.

Monday, January 2, 2012

LUZIR


um no outro
nos colhemos
os despojos dos nossos corpos

o que era fogo
centelha em cinzas
se espalha em pó o que era argila

antes éramos sós
depois
sobramos dois

os segundos não mais se prendem
como gotas na corrente
são contas soltas, fiapos das horas rôtas

sequer a sombra restamos
da carne com que nos cobríamos
como a roupa, a despimos

não a pele luzente em suor
mas o que nele nos transparece
isso com os dedos percorremos

guiados pela luz
densa e escura
do desejo

que nos cega
que nos perde
que nos situa