A DURAÇÃO DAS CINZAS
vão-se os anéis de fumo de ópio
e ficam-me os dedos estarrecidos
(A.Calcanhoto e W.Salomão)
Estes versos que na tarde te oferecem
mais que desenfado, companhia,
são os órfãos filhos da solidão,
que na desatenção engravidaste.
São irmãos do silêncio que os envolve e reensina
o prazer de cada sílaba
ou o gosto amarelo dos livros
que na estante se esqueciam.
Devagar se desatam à maneira do jornal
ou dos membros que se estendem
no sofá onde aninha a preguiça,
enquanto você fuma e deposita
no cinzeiro, que é também cristal
e reverbera o transe e o fumo,
a cinza rediviva dos minutos.
Sequer imaginavas quanto tesouro
no teu quintal se guardava,
e que era apenas, para a sua surpresa,
o pó mesmo que cavaras,
sem lograr tocar nunca ouro,
mas que se moldou em outra coisa
e acabou merecendo
um nome
e uma fala.
Tanto andor perdido além da casa
à procura da palavra exata,
sempre desencontrada.
Dessas viagens, que te consumiram
as tardes, os cabelos, os amigos
não sobrou sequer o pó das estradas,
ou a luz das estrelas
(que também amornam e evaporam
como o café sobre a mesa),
mas que gravaram na garganta
um travo turvo de angústia
por não poderes esgotá-los
por ser somente tão raso,
enquanto as densidades delas
múltiplas.
Logo as vê hirtas sobre o abismo
horizontal da página escriturada.
Cada qual exige a adoração extremada.
Cada qual se alça em filho favorito.
E então experimentas o pejo de pai moço
que receia em roçá-las, para não ferir
ou maculá-las ocupando nelas uma parcela
embora ínfima, de atenção.
Acolhe assim como estão
e não deseja outros.
São os ídolos mais brunidos
no altar dos teus mitos.
E se alternam nos ofícios,
competindo por louros.
Te comoves em escrevê-los,
já que sabes que ao fazê-lo
lhes conferes maioridade.
Adiante terão de tropeçar por si
e perder-se também por si,
enquanto, outra vez perdido,
cogitarás novos consolos.
Como o amor ou como a chuva,
a sua promessa de beleza te curva.
Aprendes então a lição mais dura
de um mestre que avilta e tortura.
Aceitas a sua doação mínima,
sabendo que em contrapartida a tua entrega
terá sido somente infinita.
Alumbram na tua vista
as suas chispas de medusa,
atrás das quais ocultam
o conceito e a forma que perfazem
a idéia (fantasmagórica) daquilo que
à míngua de outro,
chamamos arte.
Mas que de tão humanos e tão simples
são maiores do que a vida,
que neles se articula e projeta
um sopro, uma sombra
difusa e tímida.
São flores, embora não se saibam ainda,
e esperam alguém que os recolha
ou vigie apenas,
e com um esgar de lembrança fixe
a sua quase-verdade efêmera
São gestos, mas praticados na intenção,
têm vida e fome próprias.
São os excessos de um desejo
que sublimam em desejo,
e que, uma vez cumpridos,
são como um fim em si mesmos,
tais torrentes que não souberam ser rios
e, sem desemboque, a terra reabsorve,
como se somente os movesse a casta
sedução de ser mais nada.
Enfim já pousam,
e te recompões do combate difícil.
Lá fora, a penumbra avança pela rua,
e um magenta conduz a necrose do dia.
As cores, como as casas,
numa zona de cegueira se retiram,
e um vazio agora preenche todo o universo.
Mas dentro de ti é como se o instante pairasse imóvel,
mas dentro de ti é como um mundo completo,
todo aceso e desperto.
Sorris à memória dos teus versos,
e eles, a seu modo, entre si também se riem.
Como preservar esta embriaguez,
precária como qualquer êxtase?
Já te levantas, experimentas as pernas,
estão quase alerta, e com elas caminhas.
Luzes de novo se sacodem,
uma chaleira estrila na cozinha.
Armários se esticam, pigarreia a louça.
Dedos roubam a paz das xícaras.
E a memória dos teus versos,
como um cheiro ou como a tarde,
lentamente se dissipa.
Foge rumo ao longe,
muito além das horas,
rumo aonde não te respondem.
A noite te devolve ao sofá,
e nele recobras a solidão,
suspensa no ar, que afinal
nunca perdeste.
Tentas, na tua sala sem visitas,
em vão tatear o que nela acende.
E o que encontras é nada,
ou talvez menos ainda,
menos que a sombra
sobre o sofá deitada,
onde sozinho e em silêncio
de novo repousas.