I
É meio dia e o andor das horas arremata
no céu um arco infinito
sobre o teto inconsútil de São Paulo.
Mais que palavras, gestos maduros se despegam dos muros
tatuados que separam propriedades,
corpos, liberdades de ir e vir, soberanias.
Mas o tempo é rápido e logo nos ultrapassa,
e assim, se quisermos alcançá-lo,
melhor ajustarmos os passos no percurso,
sem desatarmos ou divagarmos muito.
É preciso que almoce, que saia a passear
o cachorro e a minha estultice,
e vá ao obrigatório mercado, dever de quem convive.
Pois somos, para além dos utopismos, no fundo mesmo iguais,
sentimos todos fomes, tesões, apetites de beleza e justiça,
e outras circunstâncias que moldam a dita
essência humana ou a sua falta.
E é por necessidade que somos iguais,
e só nos distinguem contingências superficiais
de cor, gênero ou crença, camisa e camada sociais.
E vamos todos à praça,
e tudo quanto se faz é projeto ou herança nossa,
e tudo o que se diz ou omite nos interessa.
Então me apronto depressa
para logo poder me encontrar
também perdido entre tantas andanças.
No caminho sou atropelado por multidões de homens apressados.
Seguem pra qualquer lado, mas não estão lá aonde levam os caminhos,
e às vezes até sorriem, mas não há ninguém sob o sorriso.
Reflito que não gosto dessas vias de penumbra porque prefiro
a luz plena do dia às cores falsas dos anúncios,
e a claridade ambígua das vitrinas
derrama nos olhos uma areia invisível
que interdita a solidariedade e os espelhos.
Mas não pretendo outro mundo, pois já me ocupo deste,
como não invejo o céu, que já o tenho sobre a minha cabeça.
Não busco tampouco a sombra,
que mantenho pendurada comigo
para o caso de excesso de paz ou de perigo.
Ainda parasito a minha carne, é quanto importa,
e sigo afundado na terra até o último fio de cabelo,
condenado ao mundo em que assisto
nas ruas de torpor e de vidro
ao sono dos corpos desocupados
dos que não ainda não despertaram.
II
Retorno à casa que todos abandonaram.
Prova da cabal imprestabilidade dos agentes imobiliários.
Já não abriga corpos, agora
teima em alojar memórias.
Tem motor e vontade próprias.
Se pombos se aninham nos vãos das horas,
é que uma sombra maior
igualmente não pesa
e da janela se evola.
A luz da cozinha eterniza
um convívio metálico no vazio
da mesa esquecido.
Ecos esporádicos repetem
o oco dos armários.
Na escada, rangem os degraus
mesmo sem os passos.
Num corredor um vento se instala
em hóspede definitivo,
a despeito das portas e do hábito
congênito de isolá-las.
O chuveiro espirra a água
em vez de guiá-la na queda,
e seria tão simples repará-lo
– no entanto, ele persiste
cada vez mais intratável,
a despeito da arte dos hidráulicos
e das tentativas impacientes
de um ou outro visitante desavisado ou tacanho
que resmunga, se desespera,
amaldiçoa o dever do banho,
para logo esquecer a mácula
no afã hercúleo de descobrir
no emaranhado das torneiras a que guarda
o enigma esfíngico da torrente cálida.
Há ritmo que sai dos dutos do banheiro,
dos cães do quintal.
A casa inteira é uma orquestração
de guinchos, estalos, balidos e chilreios
em perfeita harmonia musical.
Eu sou o fantasma com pretensões de título.
Eu sou o ruído.
III
Se cartas me procurarem, pronto as despeçam,
que não estou para elas, como para ninguém.
Exonerem o carteiro com um sorriso e um estalar de língua.
Digam-lhe, à míngua de melhor, que me extraviei a mim mesmo.
Como se perde uma bala no tiroteio ou uma agulha no agulheiro.
Como nas desavenças de amor, se perde fácil a razão,
ou como se desencontra um cachorro na distração do passeio.
Ou como a compaixão, por excesso, se perde em indiferença.
Se amigos telefonarem, informem
que não os quero preocupados com a minha ausência.
Não poluam meu retiro com bulício de busca.
Que os pássaros silenciem a tarde,
e todo barulho se guarde para os ouvidos surdos das paredes
ou para a curiosidade atávica dos vizinhos.
A amizade obriga, mas hoje eu quero estar sozinho.
Preciso estar só para que, quando retorne,
reconheça como suas as cores que ainda vejo,
pois não irradiam de mim, que sequer as mereço,
mas que só em vocês me sorriem.
Mas a solidão é pelo menos a metade da condição nossa,
e agora é preciso ir-se acostumando,
tempos virão de braços que se espedaçam e de olhos,
outrora canoros,
que não cantam mais nem jamais se encontram.
Não me esperem.
Se têm de partir, não se detenham.
Um dia a messe sucederá ao canto,
mas agora tudo o que existe é a sua falta.
Consolador, o silêncio, talvez, nos minta.
E um suor nervoso e frio orvalha das palavras.
Estão cegas, perderam os sentidos,
e se lavam dos nossos erros,
à espera das manhãs
que não amanhecem ainda.
IV
Admito que os homens não são feitos para ouvir como uma concha,
nem usam devolver em amor o amor que lhes é dado.
Mas sabem que assassinam as coisas com que lidam,
e têm que soletrar o mundo para comprar o dia.
E quem sabe uma amargura percorra
a trama mesma dos nossos gestos:
nossos atos, como causam dor,
mesmo inscientes ou involuntários,
como o mal é banalmente necessário,
enquanto o bem parece mais uma bravata,
uma casa, bela, mas sem chão.
Mas poderíamos ao menos equipá-la
de uma necessidade fática,
não legislada ou formal,
concreta, como xícara ou faca,
ao invés de ficarmos mascando
o remorso de um filho que não planejamos,
e na bruma donde nasceu de si mesmo,
não pudemos ou não quisemos vertebrar.
Mas dormindo o sono das idéias feitas,
descansamos numa paz que é menos
prêmio que renúncia da verdade:
a paz sem paz, o calar das armas empunhadas,
a paz dos vigilantes nas calçadas,
a milimétrica e ubíqua
paz capitalista,
a paz dos desinformados,
a paz de ambos os lados
do muro, nas pás dos jazigos,
a paz que jaz. Não há de ser essa a paz
que vai nos dar abrigo.
Por isso, volto sozinho à exorcizada mansão dos mitos,
onde uma fresta porosa de claridade talvez despertasse
do sepulcro infinito das possibilidades
o fantasma proscrito de um mundo esquecido.
Dizem que fantasmas não são mais possíveis,
mas suspeito que muitos desses ainda sonham em nós
e nos conferem sua hipótese de vida.
E que numa manhã voltarão a assombrar-nos,
mesmo que por acaso e a despeito da nossa aversão ao contato,
ainda que por exaustão ou falta de assunto.
E nesse dia estaremos finalmente juntos.