Quando é escuro fora de nós,
e os corpos é que acendem,
esgotadas as possibilidades dos sentidos,
duas solidões se tateiam
e coalescem numa unidade a dois.
As intenções não tardam em virar coisa,
palpáveis como um abraço.
Uns gestos se procuram, outros se espedaçam.
Um beijo aguarda paciente
o momento de encarnar-se.
Nos despimos da própria sombra,
que como fardo nos curvava à terra,
e nada mais nos resta
a não ser o desejo, a falta do que não somos,
o que sempre fomos.
Receios dissipam sua lembrança no ar.
Abaixo, sobre os troncos bicéfalos deslizam
sal e mel das efígies
que falam sem se falar
seus silêncios de esfinge.
E o que dirão de nós?
Agora que somos deuses,
agora que somos fracos?
O que direis, ó línguas faladeiras
que nos percorreis a boca, a garganta, os ouvidos,
nos roubando as vozes que nos escorrem,
para dá-las ao vento que a dilui
nas mil falas do esquecimento?
E é tamanha a distância que nos move
que secamos mil vezes à beira do poço,
e sorvemos da própria sede
que surde em nossa pele e nos converte
em fonte inexaurível um do outro
onde sem jamais nos saciar
nos dessedentamos sem cessar.
Nossas caras não se fixam, são feixes de máscaras.
Nossos peitos não crispam, são balões acústicos.
E seguimos a um ritmo zunindo,
graves e proparoxítonos,
instrumentos do canto que nos tangimos.
Nosso baile embala e embaralha os astros,
enquanto, malgrado certo descompasso,
os nossos passos
penduram no firmamento um infinito arco
rumo a um céu ainda mais alto.
Teus cabelos vertem em viagem insensata
pelas conchas das mãos suas negras águas,
que nos afagam e nos afogam
num breu abrupto de todos os signos.
Já nossas almas os ultrapassam,
vibram
numa velocidade fantástica
e percorrem mais rápidas
que a luz o trajeto de Meríope a Alfa de Centauro,
nos derretendo na cama deitada sobre o quarto.
Até enfim jazermos alheios ao mundo e a nós mesmos,
mas plenos e mundanamente crentes
em qualquer coisa que não somos nós
mas que, breve, nos pertence,
e a que pertencemos incomensuravelmente.
Embora juntas as mãos em gesto piedoso,
não há luto. Assim como quedamos,
indiferentes à nossa imolação,
estendidos sobre o chão,
somos um só afeto elementar,
que na quietude repousa o sono
dos que não ousam despertar.
E, contudo, uma chama ainda nos inflama
e realiza em nossa matéria diáfana
uma palpitação secreta de asas.
Não houve troca nem barganha, neste jogo
o que um perde, o outro não ganha.
Um torpor sepulcral nos veste
de uma nova inocência e garante
o equilíbrio geral do além-gozo,
onde sem solução não sencomunicam os instantes,
nem são proferidas as diminutivas fórmulas
que só escutavam os amantes.
O sangues ainda resvala,
mas espesso, rascante,
como dormitam os membros
que vaivinham antes.
E é tão esquiva a lembrança!
Onde a paz buscada e só de relance avistada?
Onde o país que em transe nos fugia com as estradas?
Pois somos de novo os dois a sós, mais nada,
exatos e escassos como antes,
nem melhores nem piores,
apenas sobrantes a toda explicação sonegada.
Onde o tudo neste nada?
Mal a eternidade nos roça, e o tempo nos acorda.
O olho do sol volta a vigiar zeloso sobre o mundo.
A manhã arredonda nas pupilas, aos poucos
recobra-se o fio esgarçado do dia,
e nos separamos sem achar-nos um no outro.
Despertamos sem despertar,
nos mentindo sem enganar,
voltando às mesmas rotas,
ainda estranhamente virgens.
Até que venha nos acossar
um desejo novo de de novo desejar
outra paz narcótica,
outra foz e outra origem,
em que baste sem nos bastar
a nossa quota de vertigens.
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